Não são poucas as vezes que nos deparamos com a ideia de uma universalidade da comunicação musical, como se esta, como linguagem fosse completamente absorvível pelos ouvidos atentos, independente da origem étnica e histórica do individuo. Muito estranho soa esse pensamento nos dias de hoje, ainda que muito recorrente. Quando da subversiva virada do século XX, quando a música pós-romântica rompeu, seguindo seu curso através do século XIX, as fronteiras da tonalidade clássica, chegando ao extremo do cromatismo exacerbado, desprovendo o ouvinte das relações previsíveis das relações harmônicas e formais. Os compositores se viram diante de um dilema extremamente denso: o compositor tornou-se autônomo diante dos sons. A barreira da tonalidade transpassada abriu um leque de possibilidades ao qual cabia a pensadores da música reorganizar sua maneira de compor, buscando a mesma “verdade” que se encontrava numa sinfonia de Mozart dentro dos padrões do classicismo, ou uma busca beethoveniana de um desenvolvimento temático obsessivo, ou um rompimento brusco, em prol do programa, de um poema-sinfônico de Liszt. Ao buscar a mesma verdade, sem repetir e copiar os mestres utilizando-os como fôrmas, o leque expandiu-se, absurdamente, pois cada compositor se sentiu no dever de encontrar esse caminho por si só, ou no máximo, seguir o caminho de acordo com alguns colegas próximos, mas longe de tecer e imaginar grandes escolas e técnicas comuns como se fazia no passado. O resultado foi a imensa produção de ideias do século XX. Se Schoenberg reestruturou os 12 tons da escala temperada numa nova organização não-hierárquica entre os tons, outros ainda procuraram as sonoridades expandidas dos instrumentos tradicionais e/ou não convencionais, ainda outros procuraram buscar novas formas de se aproveitar a mesma e velha tonalidade, buscando o infinito dentro do mesmo, e em seguida, numa proporção geométrica, cada uma dessas saídas geraram novas fórmulas para que pudessem ser desenvolvidas (como o serialismo integral, a música aleatória, a música eletroacústica etc) onde a ideia era sempre expandir as possibilidades sonoras e expressivas da organização dos sons e timbres através da utilização de novos materiais e procedimentos.
Desse modo, passamos por um século extremamente rico acerca da produção e realização de ideias com a manipulação do som e consequentemente uma produção musical de uma pluralidade assustadora (grandiosa). Assustadora na medida que a velocidade dessas mudanças, a sede dos compositores e artistas em experimentar suas ideias, o surgimento do rádio, depois da gravação e o crescimento do poder do mercado impondo as necessidades que lhe convinha, são alguns fatores que promoveram um enorme distanciamento do público em geral dessa nova produção. Poucos acompanharam a nova música sendo feita, e conforme esta se desenvolve nessa velocidade, não se acompanhou a linha de raciocínio. Como uma vilarejo, onde se busca uma língua cada vez mais rica, mas que, passado muito tempo sem se ter contato com os habitantes, ao retornar, encontra-se um dialeto muito distante, incompreensível, passível de revolta por parte do novo-leigo diante da sua nova incapacidade imposta pelos seres lá “isolados”. Ora, se, então, ali falava-se uma língua universal, logo, todo esse processo a torna completamente local. Uma língua que precisará ser absorvida, que se entenda o processo de sua evolução para que, ao passo que o novo-leigo revoltado consiga estabelecer as conexões do seu conhecimento consumado para com o processo que gerou as modificações, fazendo com que a incompreensibilidade aos poucos se desfaça, e sua razão decifre os signos sonoros a ponto de, através da inteligibilidade, seu corpo reagir de forma espontânea aos estímulos, à emoção.
Logo, a universalidade não é bem uma ideia moderna da música. Ainda antes buscou-se muito tal conceito, e com efeito conseguiu-se, através de padrões rigidamente estabelecidos, promover uma música, ainda que puramente instrumental, que comunicasse diretamente aos ouvintes (acostumados com aquela organização) os signos musicais. O compositor tinha as ferramentas e os moldes na mão, cabia a ele trabalhar sobre os moldes a ponto de dosar a criação de expectativa, através do novo, do imprevisto, com o deleite da volta aos padrões e contemplar a expectativa. Assim estruturou Haydn, a sinfonia e a, depois chamada, forma sonata, que até hoje permeia a produção musical. Aos poucos a rebeldia social buscou o rompimento cada vez mais brusco dessa formalidade e das soluções harmônicas, pois quem se dispõe a ouvir o novo, não se contenta em ouvir repetições eternas das soluções e compreende que cada vez mais terá que se dispor a entender os signos que fogem àqueles já incorporados. Lógico, se se busca romper com alguma coisa, ainda que a forma, deve-se ter em mente que a forma padrão tem de estar subentendida, na obra e no ouvinte, e a expectativa não realizada de imediato cria o impulso emocional excitante. Aos poucos a expectativa se demora cada vez mais a ser realizada. Pouco a pouco na história dissonâncias vão deixando de tomar seu rumo corrente, agregam-se às consonâncias, a forma se dissolve, o tema musical passa a conduzir a obra, ainda que não pertença a uma estrutura. Até que a expectativa para de ser resolvida, quando se imagina o deleite de um repouso harmônico, tem-se uma modulação longínqua, que nunca mais retornará para o tom original e fará com que o repouso que é esperado não seja harmônico mas tenha outro sentido, como, por exemplo, de uma reexposição temática completa, onde reconheça-se um tema importante, ainda que este não esteja dentro de uma forma rígida, ou no tom original, quem sabe até esteja em posição métrica e escrita rítmica diferente.
As possibilidades eram (são) infinitas. E retorna-se ao fato do distanciamento dessa audição compromissada com o cerne da obra, ora, o que de diferente tem a música produzida desde a virada do século XX até hoje, senão a mesma busca de compreensão, ainda que sem a busca da hegemonia idiomática? Podemos dizer que a música ainda que pluralizada em tantos preceitos e conceitos, ainda é para ser entendida, apreendida pelo que ela é, pela sua habilidade de moldar os sons e de penetrar na nossa psique. Basta que a compreensão esteja um pouco mais aberta e bem intencionada, assim como os ouvidos, não apenas buscando “lugares-comum” no ouvir musical, mas sim, buscar, como o ouvinte de época de Mozart buscava a novidade naquilo que ele conhecia muito bem, nós temos que encontrar as bases que sustentam uma música de hoje em meio a tantas novidades que ela traz. É o mesmo princípio, porém, ao que antes era aplicado à “linguagem Universal” agora é só abstrair a “linguagem particular” para compreender o discurso e utilizar todas as particularidades para deixar aquilo que na música (como sendo a representação direta da Vontade – assim como o Mundo - Schopenhauer) é imanente que é a sua capacidade de transmitir seus signos ao ouvinte. Basta que este indivíduo não feche o ouvindo investigativo e auspicioso que será capaz de direcionar esses signos para a sua razão, tão logo cria-se o atalho para a direta sensação do prazer.